Situada no centro histórico da vila, defronte ao Mosteiro de Santa Maria de Arouca, a capela da Misericórdia é um edifício de arquitectura religiosa de traça maneirista, correspondente a um ciclo construtivo que proliferou na segunda metade do século XVI e primeira do XVII, marcado pela influência italiana, mas comprometido com a austeridade da arquitectura chã tipicamente portuguesa.
Mandada erigir pelos devotos, em 1612, conforme se infere da inscrição existente no friso do portal, mantém a estrutura original seiscentista, muito embora tenha sofrido algumas alterações no decurso dos tempos.
Das pequenas dimensões, segue o esquema tradicional de corpo único de planta longitudinal, à qual acresce, adossadas ao lado direito a sacristia, sobreposta pela casa do despacho, espaço de reunião e decisão das Mesa e da Irmandade, edificadas no século XVIII. Ao lado direito da frontaria, foi erigida no século XIX uma torre sineira paralelepipédica à fachada, apresentando as pilastras dos respectivos cunhais independentes.
A frontaria, com embasamento granítico e pilastras nos cunhais, segue um modelo de fachada de portal com alfiz de moldura rectilínea e remate em arquitrave. A porta axial, em arquivolta de arco pleno, é enquadrada por pilastras assentes em altos pedestais rectangulares e encimadas por pináculos, com remate arquitravado de friso e cornija. O friso encontra-se preenchido com a inscrição alusiva à sua fundação: DEVOTI – FECERE - AN – 1612.O portal é ladeado por postigos rectangulares, moldurados e gradeados sobrepujados por cruzes de assento de terminações trevadas, setecentistas. O remate, que se configura em frontão triangular, alongando-se por todo o alçado, apresenta no centro do tímpano um óculo de esbarro encimado por um escudo com as armas reais, alusivas à protecção régia a que as Irmandades da Misericórdia se encontravam sujeitas, datado do século XVIII. No coroamento possui pináculos piramidais colocados sobre pedestais, nos vértices laterais, e uma por cruz latina, assente em soco, no vértice central.
A torre sineira é composta por três registos, demarcados por friso. No primeiro, possui embasamento na continuação da fachada e uma porta de entrada de acesso á sacristia e, no segundo, uma porta de sacada com guarda de ferro. O último, de cornija saliente, possui embasamento ornado com um florão central, quatro ventanas de arco pleno e entablamento de friso e cornija. Sobre este, eleva-se o remate, composto por pináculos sobre as pilastras dos cunhais e por cúpula, quadrangular, coroada por esfera com cata-vento de ferro, ornado por um anjo.
O espaço interior, de uma só nave, embora tenha sido alvo de obras no século XVIII, conserva a sua primitiva estrutura da centúria de seiscentos. A riqueza do seu programa decorativo e a unicidade do conjunto, patente na conciliação harmoniosa da composição original do século XVII com a campanha de obras de matriz barroca do século XVIII, conferem a este espaço exuberância e esplendor no contexto artístico da região.
À semelhança do que sucedia em muitas igrejas das misericórdias erigidas neste período, é possível perceber a divisão espacial em dois patamares distintos, diferenciados somente por um desnível do chão: o espaço da capela-mor, local onde o sacerdote ministra o serviço religioso, mais elevado e com o chão com lajes de granito, e o restante espaço, cujo chão é coberto por madeira.
As paredes, com excepção da do topo, onde se localiza o retábulo-mor, são integralmente revestidas com azulejos de padrão de motivos vegetalistas e geométricos, datáveis de cerca de 1620. Este recurso artístico que coteja ao espaço exuberância e colorido foi, a par da talha, amplamente utilizado no nosso país nos espaços religiosos, pelas suas potencialidades estéticas e luminosas, capazes de metamorfosearem esses mesmos espaços. Formando uma composição azulejar, designada por azulejo de tapete, presencia-se nesta composição a inclusão de pequenos painéis hagiográficos com a figuração dos Apóstolos.
O uso da talha está presente na cobertura da capela, onde configuram as cimalhas e as molduras dos caixotões que a compõem. O tecto, de planta longitudinal e abobadado, compõem-se de cinquenta caixotões, dispostos em dez linhas com cinco caixotões em cada uma, formando cinco colunas. São de formato quadrangular, excepto os laterais da linha junto ao retábulo-mor, os quais, executados de forma a permitir colocação do mesmo, apresentam a configuração de um triângulo isósceles.
Com características do figurino tardobarroco, os enquadramentos e as molduras são pintados em marmoreados de tons beges, azuis e vermelhos, tendo os ângulos dos emolduramentos exteriores demarcados por florões entalhados no fecho. Com objectivos pedagógicos e catequético, as pinturas exibem representações de temática cristológica, mariana e hagiográfica e são datados do terceiro quartel do século XVIII, conforme se infere da legenda pintada no caixotão central, junto à porta de entrada, onde se lê: ESTA OBRA DE PINTVRA SE MANDOV FAZER EM O ANO 1773 SENDO PROVEDOR O D.OR JOZE DOS S.TOS TEIXEIRA TELLES.
Nos temas cristológicos encontramos representações dos Passos da paixão e de passagens da vida pública de Jesus Cristo: o encontro com a Samaritana e alguns dos Seus milagres. Nas pinturas ligadas à vida da Virgem, os temas vão desde a Anunciação até à Coroação. No que se refere à iconografia dos santos, estão representados os Apóstolos, os Evangelistas, os quatro Doutores da Igreja Latina e alguns santos frequentes nas devoções populares da época. Na disposição das pinturas, aparentemente parece não existir coerência na leitura dos temas. No entanto, verifica-se que existiu uma preocupação em ordenar a leitura segundo critérios, como acontece nos painéis ao centro que representam os 15 mistérios do Rosário: Anunciação, Visitação, Adoração dos Pastores (Nascimento de Jesus), Apresentação de Jesus no Templo, Jesus entre os doutores, Oração do Horto, Flagelação, Coroação de espinhos, Cristo a caminho do Calvário, Crucifixão, Ressurreição de Cristo, Ascensão, Pentecostes, Assunção da Virgem Maria e Coroação da Virgem Maria. De igual modo acontece nos painéis mais perto da cabeceira com a sequência das pinturas relativas aos Apóstolos, seguidos dos Evangelistas, com os seus atributos de tetramorfo e dos Doutores da Igreja. Nas últimas linhas, os painéis junto à cabeceira apresentam elementos do conjunto iconográfico da Arma Christi: o martelo, os cravos e a coroa de espinhos, apresentando os últimos cinco, junto à porta da entrada, a representação de Santos de ampla devoção popular: São Martinho, São Sebastião, Santa Apolónia e São João Baptista, a enquadrar o painel central, onde se encontra a inscrição alusiva ao encomendador.
A parede testeira da capela, sobre o retábulo-mor, é forrada por um conjunto de cinco painéis figurativos, que supomos que tenha sido executado em simultâneo com as dos caixotões da cobertura do tecto (1773). As pinturas representam, na parte central, o Escudo Real que é flanqueado, à esquerda, pela representação do senhor dos Passos e, à direita, pela de Nossa Senhora das Dores. Os painéis laterais exibem dois robustos anjos alados, que sustem elementos do conjunto da Arma Christi: a esponja de vinagre e a lança.
Localizado na parede testeira, o retábulo-mor de madeira entalhada, pintada e dourada, insere-se no formulário maneirista, evidente nas suas proporções anti-clássicas e na sua feição planimétrica. As modificações posteriores – no sotobanco e nas ilhargas – que lhe foram imputadas, não impedem a leitura do esquema maneirista.
Resultante da campanha de obras realizada nos meados do século XVIII, do lado do Evangelho, foi edificada uma capela em arco de volta perfeita, que possui um retábulo de talha dourada, marmoreada e policromada, dedicado ao Senhor dos Passos, que segue os cânones do formulário tardobarroco.
No lado da Epístola, no topo da capela, encontra-se uma porta rectangular de acesso à sacristia e à sala do despacho, rasgada em 1714, conforme se depreende da inscrição existente na padieira: “SENDO PROVEDOR MANUEL PEREIRA BURGO, MANDOU ABRIR ESTE PORTAL À SUA CUSTA – ANO – 1714”.
Na sala do despacho, situada sobre a sacristia, encontram-se o púlpito e a tribuna dos mesários. O púlpito, datado do século XVIII, assenta sobre base pétrea pintada em marmoreados, de mísula trabalhada com desenhos geometrizantes. Sobre a mísula recai o balcão, de madeira entalhada, dourada e policromada, decorado com motivos geométricos de losangos e elipses alternados, que suporta uma balaustrada torneada, que nos ângulos apresenta prumadas em forma de quartelões, decoradas com ornatos vegetalistas dourados. No remate um varandim, com frisos corridos, adornado com querubins, interpolados com motivos florais dourados. Rasgada na mesma parede, muito próximo, encontra-se a tribuna dos mesários, com varandim, de madeira, abalaustrado.